5.9.06

Integração Sul-americana-uma introdução

O desafio do século XX para a América do Sul foi transformar as clássicas fronteiras de separação em fronteiras de cooperação. O século XIX foi um período de conflitos e guerras entre as nações sul-americanas, onde se destacaram, dentre outros fatores, a Guerra do Paraguai, em 1864, a Guerra do Pacifico, em 1879, as disputas nas demarcações de fronteiras e a rivalidade entre Brasil e Argentina. Já no século XX, começa a ocorrer uma aproximação entre os dois países, consumada no Tratado ABC, que englobou o Chile, no inicio da década de 1910. No entanto, alguns acordos celebrados pelo Brasil, na primeira metade do século, acabaram abandonados, ou por desinteresse econômico, ou por falta de recursos financeiros. Esses são os casos da ferrovia Madeira-Mamoré - construída no início da década de 1910 por determinação do Tratado de Petrópolis (1903) - que se estendia às margens dos rios Madeira e Mamoré, em Rondônia, até a fronteira com a Bolívia. A ferrovia foi abandonada após o fim do ciclo da borracha na Amazônia. Já na década de 1930, o Brasil entrou em entendimentos com a Bolívia para, dentre outras coisas, explorar petróleo em seu território. Das negociações resultaram os chamados acordos de Roboré que, entretanto, não foram continuados e sofreram alterações na década de 1950 por falta de recursos do Brasil para iniciar os investimentos.
A partir da década de 1960, há uma intensificação da cooperação com a criação da Alalc, em 1960, substituída pela Aladi, em 1980, a construção da ponte da Amizade (1964) e da hidrelétrica de Itaipu (1973), a assinatura do Tratado de Cooperação da Amazônia (1978), o Tratado da Bacia do Prata (1969), o Acordo Tripartite (1979) entre Brasil, Argentina e Paraguai para o aproveitamento do potencial hídrico do rio Paraguai, a criação do Grupo do Rio (1986), que unificou os antigos grupos Contadora e Apoio, para atuar como foro de concertação política dos países do continente. Em 1991, é assinado o Tratado de Assunção, entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, que criou o Mercosul. Juntamente com a Comunidade Andina de Nações (CAN), o Mercosul fez avançar o processo de integração da América do Sul.
Não obstante, o passo decisivo no processo de integração foi dado na Cúpula de Brasília, em 2000, que reuniu os chefes de Estado das doze nações sul-americanas, onde foi assinado o tratado de criação da Iniciativa de Integração da Infra Estrutura Sul-americana (IIRSA), responsável pelo projeto de integração física do continente e formador das bases para o estabelecimento da Área de Livre-Comércio Sul-americana (Alcsa). Atualmente, os países da região ainda não se encontram conectados por uma rede física abrangente e altamente capilarizada. Não existem rodovias em número suficiente e em boas condições de trânsito e ferrovias que liguem os centros produtores aos consumidores dos diversos países. Há projetos isolados, tais como: corredor Mercosul (rodovia de integração entre Brasil, Uruguai e Argentina); hidrelétrica de Itaipu; gasoduto Brasil-Bolívia; e, atual asfaltamento da rodovia Manaus - Boa Vista - Caracas. Desse modo, o grande desafio do projeto de integração regional é criar uma grande rede física que açambarque todo o continente sul-americano.
Cabe frisar que a Constituição brasileira de 1988 estabelece em seu artigo 4º, parágrafo único, que a “República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos países da América Latina, visando a formação de uma comunidade latino-americana de nações”.
Posto isso, alguns fatores restritivos ao processo de integração merecem destaque: a instabilidade político-institucional dos países da região; a insuficiência de capitais para investimentos; e, os conflitos e desconfianças mútuas entre as nações sul-americanas.
A instabilidade político-institucional ainda causa empecilhos para uma maior integração regional. Por um lado, o problema da pobreza está longe de ser equacionado e gera reivindicações e mobilizações populares que, por sua vez, podem converter-se em instabilidade política. Por outro lado, o populismo continua vivo na região e alimenta a instabilidade uma vez que o governo passa a depender do carisma de seu líder e este, por seu turno, pode desaparecer, culminando em manifestações populares. A tentativa de golpe contra o presidente Hugo Chaves na Venezuela e a atual crise boliviana evidenciam os problemas reais da integração regional, pois atingem um setor chave do projeto de interligação da infra-estrutura regional, qual seja, o setor energético, especificadamente, o de petróleo e de gás natural. A reação à crise boliviana foi a elaboração de uma proposta de construção de um anel energético ligando o sul do Peru ao norte do Chile e, daí, avançando até os países do Mercosul, de forma a se diminuir a dependência do gás boliviano. Ao Brasil, esse projeto é de grande importância, pois o país progressivamente tornar-se-á o maior consumidor de gás da região e, além disso, o anel energético tornaria o mercado sul-americano um pólo de atração de investimentos estrangeiros.
Outro elemento restritivo é a insuficiência de capitais para a consecução de projetos de investimentos na região. Tendo em vista a escassez de recursos dos países sul-americanos e a grande amonta de capital necessário para a execução de obras e serviços de infra-estrutura, buscou-se apoio técnico e financeiro do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), da Corporação Andina de Fomento (CAF), do Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata (Fonplata) e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Entretanto, resta ainda o desafio de atração do setor privado para implementação de projetos de infra-estrutura em transportes, energia e comunicações, além do desenho de um mecanismo de parceria público-privado como o previsto no modelo da União Européia (EU), concretizado em 2000 com a assinatura do Acordo de Cotonú.
Por fim, ainda sobrevivem conflitos e desconfianças entre os países sul-americanos. A Bolívia reivindica do Chile uma saída para o mar, perdida na batalha do Pacifico em 1879. Até hoje não foi estabelecido um acordo definitivo. Ressalte-se que, recentemente, o Chile começou a retirar as minas terrestres da fronteira com a Bolívia, visando estimular uma confiança recíproca. Além disso, pode-se citar o recente contencioso entre Venezuela e Colômbia a respeito da captura de um narcotraficante colombiano em território venezuelano, o qual gerou queixas por parte do governo venezuelano da entrada ilegal de agentes colombianos em seus domínios.
Sem embargo, o encontro dos doze chefes de Estado sul-americanos em Brasília, no ano de 2000, promoveu uma nova e inédita aproximação entre os países do Cone-Sul. Durante a década de 1990, houve uma democratização dos governos da América do Sul, com o fim dos regimes autoritários no Chile, no Brasil, na Argentina e no Paraguai. Isso acarretou uma nova relação entre os Estados uma vez que os regimes militares estimulavam a rivalidade na região. Além disso, havia o contexto da Guerra Fria que não favorecia a aproximação. Soma-se a isso, o esgotamento do modelo de substituição de importações e a crise da dívida dos países latino-americanos nos anos 1980. Tudo isso favoreceu o avanço da democracia e do liberalismo na região, que levaram à abertura econômica e à aproximação política. Foi o fim do Estado desenvolvimentista, indutor do desenvolvimento nacional, e início de dois novos paradigmas, o Estado normal – invenção latino-americana dos anos 1990 -, subserviente e suscetível à coerção dos centros hegemônicos, e o Estado logístico que fortalece o núcleo nacional, transferindo à sociedade responsabilidades empreendedoras.
Esses novos paradigmas favoreceram a integração regional, que, segundo Karl Deutsch (1982), para ocorrer, devem existir quatro condições: (a) relevância mútua das unidades, ou seja, o tamanho do fluxo de comércio, comunicações e viagens no interior do bloco; (b) compatibilidade de valores e recompensas em comum efetivas; (c) receptividade mútua; (d) determinado grau generalizado de identidade conjunta ou de lealdade em comum, em outras palavras, valores comuns. Nesse contexto, a IIRSA pode atuar como um dos dois pilares da integração das nações sul-americanas ao estabelecer tarefas comuns e de relevância para os Estados, com recompensas efetivas e desenvolvimento de uma identidade conjunta sul-americana.
Suas vantagens são, fundamentalmente: atração de investimentos externos; estímulo ao comércio intra-regional, aumento da competitividade externa dos Estados; e, maior integração das nações política, econômica, social e culturalmente.
Há um encadeamento entre essas quatro vantagens, uma vez que a construção, pavimentação e recuperação de rodovias transnacionais e interligação de ferrovias novas ou existentes, formarão redes, integrando mercados produtores e consumidores de diversos países, além de favorecer a atração de investimentos de capital tanto regional quanto internacional. Esses fatores trarão um grande estímulo ao comércio da região, aumentando a competitividade dos países na medida em que aumente a escala de produção, reduza os preços dos produtos e os custos de logística. Tudo isso, estimulará a integração econômica, política, social e cultural das nações sul-americanas, abrindo caminho para a execução e aprofundamento da Alcsa.
O outro pilar de sustentação do projeto de integração é um entendimento entre países do continente para exploração de recursos energéticos na região, a exemplo da proposta apresentada recentemente pelo presidente venezuelano Hugo Chaves. Ele propõe celebrar acordos governamentais que possibilitem entendimentos empresariais entre Petrobrás, Energia Argentina (Enarsa), Petróleos Venezuelanos (PDVSA) e YPF boliviana, a fim de desenvolverem-se atividades conjuntas de exploração, prospecção, refino e comercialização de petróleo e gás natural. Assim, o modelo de integração sul-americano se aproximaria do europeu e, o mais importante, unificaria esforços na exploração de um mercado de grande importância para os países da região, estimulando forças centrípetas de cooperação por meio do fortalecimento de laços políticos entre os respectivos governos.
Resta descrever as funções da IIRSA, seus objetivos e suas três áreas de atuação estratégica, uma vez que esta é uma das vigas-mestra desse projeto de pesquisa.
A IIRSA é um foro de diálogo entre autoridades responsáveis pela infra-estrutura de transporte, energia e comunicações nos 12 países da América do Sul. Em seus quatro primeiros anos de funcionamento, ela se concentrou em três áreas de atuação principais: (a) desenho de uma visão estratégica para a integração física sul-americana, em busca de princípios básicos comuns; (b) definição de eixos de integração e desenvolvimento (EID), sendo sua função identificar para cada EID os requisitos de infra-estrutura física em transportes, energia e comunicações para se estimular o desenvolvimento regional; (c) criação de processos setoriais de integração (PSI), de forma a se buscar a modernização e a atualização dos marcos regulatórios nacionais que normatizam o uso da infra-estrutura, promovendo a harmonização de políticas, planos, marcos legais e institucionais entre os países.
Além disso, o Comitê de Direção Executiva da IIRSA produziu sete princípios orientadores da visão estratégica para a integração física sul-americana, quais sejam: (1) regionalismo aberto; (2) eixos de integração e desenvolvimento; (3) sustentabilidade econômica, social, ambiental e política-institucional; (4) aumento do valor agregado da produção; (5) tecnologia da informação; (6) convergência normativa; (7) coordenação público-privada.
Por fim, segue uma breve síntese da atual conformação das três áreas estratégicas englobadas pela IIRSA:
(i) Energia. A produção atual de eletricidade é majoritariamente hidráulica e sua expansão, na maior parte dos países, desenvolver-se-á a partir de uma base de centrais térmicas cujo combustível será o gás natural. Essa conformação levará à complementaridade das matrizes energéticas entre os países da região. O desafio, não obstante, será passar de um modelo fundamentalmente estatal para um onde há predominância majoritária de participação do setor privado, o que poderia vir a melhorar a eficiência da capacidade instalada, orientar inversões em infra-estrutura e reduzir os custos da energia, enquanto se incrementa a qualidade do serviço. Ressalte-se que no setor gasífico, o Brasil virá a tornar-se o maior importador de gás da América do Sul.
(ii) Transportes. O crescente fluxo comercial entre os países sul-americanos realiza-se, de forma majoritária, sobre rodovias, em detrimento do transporte ferroviário. A rede viária, entretanto, está longe de ser homogênea, necessitando de obras de ampliação, recuperação e conservação em vários pontos. Ademais, em países como Bolívia, Paraguai e Peru, observam-se trechos longos em condições precárias, sem conservação e mal conectados, como pontes em más ou mesmo sem condições de tráfego. A via fluvial, por sua vez, apesar da extensa rede de rios navegáveis, possui baixo índice de utilização no conjunto total e só é representativa em alguns casos específicos. Daí a importância da construção da hidrovia Paraná-Paraguai, o maior projeto de integração física continental.
(iii) Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). O setor é dinâmico e inovador, mas contribui com parcela relativamente pequena do produto total da economia. As TICs podem aumentar a competitividade regional de maneira substancial – facilitando a modernização da educação da força de trabalho e das instituições públicas dos países – a partir da redução de custos e de barreiras burocráticas e estimulando a capacidade de interação de cadeias produtivas eficientes e de empresas e instituições em gerar inovação e conhecimento.
Por tudo isso, partindo-se da afirmação de Karl Deutsch (1982) de que a “teoria do funcionalismo em relações internacionais é baseada na esperança de que ao delegar mais e mais tarefas comuns a organizações funcionais específicas, as nações do mundo tornar-se-ão gradualmente integradas em uma única comunidade dentro da qual a guerra será impossível”, pode-se concluir que a integração regional em bases de interesse comum poderá vir a reduzir ou eliminar os conflitos e as desconfianças ainda existentes no continente.
Deve-se salientar que a Alcsa é uma iniciativa econômico-comercial e como tal será tanto mais bem sucedida quanto melhores e mais capilarizadas forem as vias de circulação entre as nações participantes. Ademais, segundo o modelo de Pearroux de “pólos de crescimento”, os espaços não mais se diferenciam sobre a base de seu estoque de capital, mas em função das aptidões produtivas de sua força de trabalho e de sua aptidão em conceber bens novos e processos técnicos mais avançados. Nesse contexto, as TICs poderão aumentar a capacidade da região de vir a se comportar como um conjunto de centros de onde emanam ou convergem os campos de força, ao invés de se comportar como um simples lugar de passagem dessas forças.
Outrossim, a fim de que o projeto de integração regional não sofra interrupções devido a crises políticas ou em virtude de recessões cíclicas do capitalismo, um entendimento empresarial dos países sul-americanos no setor de petróleo e de gás se faz de grande importância, uma vez que poderá criar uma compatibilidade entre valores e recompensas em comum efetivas e um senso de lealdade comum, responsáveis pela solidificação dos elos entre os países e pela garantia do fornecimento de recursos energéticos essenciais para o crescimento sustentado das economias regionais. Cabe lembrar que a CECA é considerada a “célula mater” da atual União Européia e que sem o carvão e o aço não teria havido o “milagre econômico”, instaurado a partir do Plano Marshall.
Daí a importância central dos dois pilares centrais – IIRSA e exploração comum dos recursos de gás natural e petróleo - para o projeto da Alcsa e da integração regional, que, acrescente-se, aumentarão as credenciais do Brasil como interlocutor ou parceiro da União Européia, do Nafta e da Asean.