20.11.06

Ordem e desordem nas relações internacionais

As relações internacionais apresentam uma relação dicotômica entre nomia e antinomia, que rege a ordem internacional e produz maior ou menor cooperação entre Estados. Os responsáveis pela condução da política externa dos Estados se confrontam com o que se denomina o problema maquiavélico e o kantiano. Aquele é o do realismo dos meios legítimos da condução da política externa que, no limite, comporta o uso da força. Este é o da busca da “paz perpétua” e de um principio regulador da humanidade que substitua a “moral do combate”. Na interação dos dois, Raymond Aron desenvolve uma ética de prudência e de equilíbrio entre excessos. Nesta não cabem profecias, mas há espaço para o dever da segurança.
A falta de ordem nas relações internacionais decorre de algumas características intrínsecas à sua organização e ao seu funcionamento. Em primeiro lugar, devido a ausência de uma entidade supranacional e hierarquicamente superior aos Estados, somada à igualdade formal das nações. Dessa forma, por meio de uma relação entre unidades políticas soberanas e de igual nível hierárquico, desenha-se um modelo sistêmico anárquico que remete a uma organização social primitiva, onde se recria o estado de natureza. Daí, para os teóricos realistas, o sistema internacional ser um ambiente perigoso, tendente à formação natural de relações de dominação e de subjugação. Por isso, a preservação do Estado faz-se, necessariamente, através do uso da força. Acrescente-se que a cooperação se dá na esperança de recompensas e na busca de satisfação dos próprios interesses egoísticos.
Soma-se a isso, o fato de nas relações internacionais haver a ausência da sanção para punir um Estado transgressor de tratado ou norma internacionais dos quais faça parte. Esta é uma das principais diferenças entre o modelo constitucional adotado pelos países e a vigente na ordem internacional. A sanção existe como forma de punir ilícito praticado por nacional contra a ordem constitucional vigente. Já no sistema internacional, o Estado membro de algum tratado internacional não segue as normas estabelecidas a fim de evitar possível penalidade, mas em função, ou de seu próprio interesse, ou por medo de eventual retaliação por parte de outro Estado, que, no entanto, é apenas uma expectativa, uma vez que cabe a cada país, independentemente, a decisão, construída a partir de seus próprios interesses e objetivos.
Portanto, as relações internacionais configuram-se como um ambiente social regido por relações de força entre seus membros, os quais, além disso, convivem diariamente como risco iminente da guerra ou da dominação pó parte de outro Estado. Sem embargo, essa anomia e esse estado hobbesiano de guerra de todos contra todos, não são de todo plenamente e permanentemente válidos, uma vez que o mundo tem experimentado períodos relativamente longos de estabilidade e de paz, a despeito das duas últimas grandes guerras mundiais ocorridas na primeira metade do século XX.
Posto isso, pode-se falar na existência de uma ordem – interessada ou consentida – do sistema internacional que produz um mínimo de segurança e de respeito ás normas internacionais. A primeira razão para esse fato é o medo de retaliações. Quanto menores forem os excessos de poder – político, militar, econômico ou cultural – de um Estado, menor será sua capacidade de impor seus interesses aos demais, em outras palavras, suas ações externas serão pautadas pela legitimidade e credibilidade, ao invés da imposição de sua própria vontade através de seu poder. Sendo assim, uma pequena nação não será capaz de, por exemplo, proclamar o direito de construção de um artefato nuclear para defesa sem provocar reações e retaliações de outros países.
Segundo os idealistas, os Estados cooperam entre si porque é melhor para eles. Há certos temas que interessam e afetam a todos os países, sendo, portanto, necessário uma atuação conjunta. Ademais, em contraposição aos realistas – segundo os quais os instintos humanos originais são maus, voltados para a dominação e a conquista e isto se reflete nas intenções dos Estados, uma vez que são dirigidos por pessoas –, os idealistas, apoiados nas idéias de Rousseau, defendem que os sentidos primários dos homens são bons, tendentes à cooperação e à sociabilidade. Por isso, os Estados podem abdicar de uma organização perfeita – soberania plena – em favor da comunidade internacional.
Dessa forma, pode-se falar em uma dicotomia entre nomia e antinomia nas relações internacionais. Apesar de seu caráter anárquico, os Estados obedecem regularmente às normas de direito internacional, imprimindo estabilidade e paz às relações internacionais. A construção dessa ordem, no entanto, demandou séculos para atingir sua conformação atual.
A construção da ordem. Em Vesfália, no século XVII, foram estabelecidas as bases do sistema internacional moderno, constituído por Estados territoriais soberanos. Nessa época, são criadas as embaixadas permanentes e as chancelarias estáveis, responsáveis pela defesa dos interesses dos Estados fora de suas fronteiras, além de atuar junto aos chefes-de-Estado do país acreditando para dirimir eventuais conflitos e negociar possíveis acordos. Ademais, é importante lembrar que Hugo Grócio inaugura o Direito Internacional Público ao publicar o tratado “The Rights of War and Peace” que definiu os princípios da guerra justa e da constituição da justiça na guerra.
A partir do século XVIII, alguns novos paradigmas vão provocar transformações internas nos Estados que se refletirão na ordem internacional. É o caso do Iluminismo, que se dissemina pela Europa, introduzindo as novas idéias liberais que ganharão forte impulso com a Revolução Industrial, a partir de 1770. Seus desdobramentos levarão ao aumento da interdependência dos Estados, em razão da explosão do comércio internacional e da difusão do liberalismo econômico (“laissez faire”) no século XIX, culminando na chamada “Idade de Ouro do Liberalismo”. Como resultado, a guerra utilizada como meio político sofrerá duros abalos devido aos seus efeitos colaterais, quais sejam, depressão do comércio mundial, aumento do desemprego e da pobreza e perda de mercados consumidores. Há, desse modo, um “trade off” entre a guerra e o comércio. A partir da segunda metade do século, começam a ser criadas as primeiras organizações intergovernamentais em resposta ao aumento do comércio e da interdependência entre as nações. Pode-se citar o caso da União Postal Internacional, incumbida da padronização e da uniformização dos procedimentos e normas do sistema postal no âmbito internacional. Entretanto, o grande salto dar-se-á no fim do século, com a criação da Corte Permanente Internacional de Justiça (CPIJ), fruto da Convenção de Paz de Haia em 1899.
Já, no século XX, surgem novas e importantes organizações intergovernamentais, cujo principal exemplo são as Nações Unidas, responsáveis pela preservação da estabilidade e do progresso mundiais e pelo avanço da cooperação interestatal. Além dela, aparecem as organizações não-governamentais (ONG´s), principalmente a partir da década de 1950, tendo importante papel na defesa de temas de ordem global, como, por exemplo, meio-ambiente, direitos humanos, liberdades civis, pobreza, Aids e direito humanitário.
Por fim, resta mencionar dois novos acontecimentos que surgem na segunda metade do século XX, a globalização e a revolução técnico-científica-organizacional. Ambas resultaram no aumento da interdependência entre os Estados ao promover dois novos paradigmas, especificadamente na economia, o neocapitalismo, o pós-fordismo e a acumulação flexível, todos baseados na inovação e, de maneira geral, um maior fluxo de mercadorias, pessoas e capitais pelas fronteiras estatais e um aumento do poder e da influência da mídia e da opinião pública internacionais.
Tudo isso, cria um novo e inédito sentido de cooperação interestatal e diminui o fator anômico das relações internacionais. Novas ameaças, como o terrorismo, aliadas às antigas, tais quais o narcotráfico, a lavagem de dinheiro, o contrabando e a imigração ilegal, exigem esforços cooperativos entre os Estados para seu efetivo enfrentamento. Estabelece-se, assim, uma dicotomia, nas palavras de Celso Lafer, entre as subjetividades das soberanias e a interdependência das nações, ou, segundo Gelson Fonseca, entre ordem e desordem, a primeira mantida por meio da balança de poder e a segunda através de possíveis harmonias.
Por tudo isso, pode-se afirmar que o aumento da interdependência das nações torna a cooperação um fim em si mesma e esta deixa de servir como meio para os Estados atingirem seus próprios interesses egoísticos. Assim, abre-se o caminho para o pluralismo, em substituição ao ideal realista e, não obstante, fortalece a ordem no sistema internacional. Contudo, cabe ressaltar que enquanto os Estados continuarem a ser as unidades políticas últimas do sistema internacional, prevalecer-se-á um regime de anarquia e de anomia.
Por fim, é importante que se frise o papel desempenhado pela opinião pública internacional e pelas organizações não-governamentais na fiscalização e na pressão pelo respeito aos tratados internacionais e pela defesa de temas de interesse mundial. Isso atenua o sentido de desordem e aumenta a noção de ordem nas relações internacionais.